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prosa com poeta: Adriana Affortunati

minha irmã de aparência e amizade, a artista Adriana Affortunati trabalha com ruínas e conhece o mundo e seus idiomas através de residências artísticas.


Vitor: o que é o lixo?

Dri: Entendo que lixo não é uma coisa em si, mas o estado em que ela se encontra. Com isso quero dizer que, "estar" lixo não significa "ser" lixo.

Se consideramos em estado de lixo algo que deixou de ter valor/utilidade para alguém e que foi, portanto, descartado, assim que este material for recolhido por outra pessoa, terá alterado de estado / teremos de desconsiderá-lo lixo. E para alterar de estado, só é preciso um novo olhar.

Sinto um certo incômodo quando dizem que trabalho com lixo. Considero os objetos que uso extremamente preciosos / únicos / raros. Exercem em mim uma paixão única.. vinda de uma surpresa admirada, pela singularidade e riqueza (gráfica) de cada pequeno item que escolho. Não é qualquer coisa que recolho.

Se existisse Lixo seria o que não presta mais para nada. Ou seja, nada, ou quase nada, é lixo. Já que toda qualquer coisa poderá sempre servir à poesia.


Vitor: tenho usado muito a palavra "entropia" em meus pensamentos. você considera seu trabalho algo entrópico?

Dri: Agora que você sugeriu, diria que de certa forma, sim. Crio sistemas que ordenam o que é considerado caótico. Mas teria que pesquisar melhor este conceito para poder responder mais precisamente. De qualquer forma, meu trabalho não parece "aumentar a desordem de um sistema"; e sim encontrar ordem em um sistema aparentemente caótico.

Cada lugar que procuro acho uma definição diferente deste conceito. Entropia Psíquica não tem a ver com meu trabalho. Mas entropia termodinâmica talvez. Você usa / pensa este conceito de qual maneira? Eu também posso perguntar?

Me entusiasmei com essa definição: é uma grandeza termodinâmica que mede a desordem de um sistema e a espontaneidade dos processos físicos. Trabalho sim com a espontaneidade dos processos físicos. Tento colher as alterações da matéria que escolho para trabalhar, sem nelas intervir diretamente.

Vitor: pode. esse conceito me surgiu a primeira vez quando alguém questionou: imagine só quando tributarem o sol? o pensamento era sobre o fim do mundo. é muito mais provável o mundo não acabar em explosão e sim na extinção do fogo do sol. o sistema solar sem sol sofreria uma entropia, pois defendi a ideia que coisas continuariam existindo de outra forma.

Dri: Sem dúvidas. Tudo se transforma! Acredito no que defende.

Vitor: o poema é uma espécie de entropia de alguma experiência que parece ter acabado.

Dri: Parecia até virar poema. O que faço tem mesmo isso de dar um novo lugar, de transformar. De Fênix. A última exposição individual que fiz dei o título de antes do pó. Tem muito a ver.

Vitor: é. como o lixo que deixou de ser lixo pra ser obra de arte.

Dri: Trabalho mais com ruínas do que com lixo. Com testemunhos de vidas humanas. O que uso nem é chamado de lixo. São escombros. Destroços. Trabalho com as marcas do tempo. onde quer que ele apareça e me surpreenda. Trabalho com o tempo. Lixo pra mim é outra coisa. A maioria do material que coleto para trabalhar eu não encontro em latas de lixo nem em caçambas. Infelizmente as pessoas tendem a associar o meu trabalho com a caçamba. Mas meu trabalho tem mais a ver com ruínas, casas abandonadas.

Vitor: ruína é algo engraçado. era algo que ainda é, mas já está sendo utilizado pra outra coisa.

Dri: Engraçado? Eu acho forte. Acho que se trata de morte. A Ruína não está sendo utilizada pra nada. Ruiu. Era, hoje serve só a atiçar a memória. Remete. Mas não é. É o estado antes da morte, antes da transformação completa. É um soco na cara de quem tem medo da morte. A ruína traz a poesia do que foi e não é mais. É o que matericamente sobreviveu do que foi e já não é.

Vitor: Ou de resistir. A capa do meu livro é uma ruína da cidade de Curitiba. As ruínas das invasões de Colônia no Uruguai são objetos de passeio turísticos.

Dri: Pois! Ruínas tendem a virar atrações mesmo. Ruínas de castelos, de fábricas, de grandes construções. E sem dúvida, são resistência. Eu costumo procurar o que não recebeu este tipo de valor turístico. Busco o que foi completamente destituído de valor. O quase nada. as ruinas que uso, quando arquitetônicas, são de espaços abandonados. Quando objetuais são de peças que estão se decompondo ao léu e eu as retiro do lugar de abandono. Me parece bonito pensar nesta diferença: lixo é descartado. O que uso, foi abandonado. Pode fazer pouco diferença, mas muda muito.


Vitor: seguindo esse pensamento dos estados das matérias e já levando a gente mais além mar e fronteiras. Ariano Suassuna não gosta muito da língua inglesa e defende sempre a língua portuguesa. a gente confunde muito o ser e o estar. já o idioma inglês usa o verbo "to be" para as duas. qual a importância de diferenciar o que é do que está?

Dri: Me pergunto se existe o que "é". Acredito mais no "estar". No rio de Heráclito. Para mim não somos, estamos sendo. E é exatamente com isso que trabalho. Busco as marcas das alterações do tempo e não algo permanente. Busco onde o tempo se faz marcar. O desbotar, as manchas de bolor, o enferrujar, o ruir. O tempo altera a cor, a forma, a consistência das coisas (nós inclusos). Sem cessar. É isso que me interessa. As marcas destas alterações. Onde o tempo se prova. No abandono o tempo trabalha mais rápido, já que não tem ninguém cuidando / evitando sua ação.

Ah, sim, o inglês. Ao menos não coincidiram ser com ter. este, pra mim é o mais preocupante. Em italiano ser e estar também se confundem. Não defenderia língua nenhuma. Acho todas de uma riqueza infinita. Estou aprendendo o sexto idioma, e um alimenta o outro. Mas entendo perfeitamente a posição de Suassuna.


Vitor: você conheceu a Coreia do Sul participando de uma residência artística, certo? como as residências artísticas mudaram sua vida?

Dri: Ahh... as residências. Precisaria de páginas para falar sobre residências. Não vou entrar no mérito do contato com outras culturas / realidades, já que qualquer intercâmbio também garantiria isto. Mas não é um fato a se desconsiderar. Mas a primeira mudança grande é, não só se permitir produzir 24 horas por dia, todos os dias, mas ter esta obrigação. E saber-se, portanto, um profissional. Em 2010 quando fiz minha primeira residência, eu estava formada hà 2 anos, e foi exatamente essa a nítida sensação que tive: sou uma profissional sendo paga para produzir. Nada mais empoderador para um artista. Além disso, fico com a sensação de que o que produzo em 1, 2 meses quando em residência, eu demoraria 1, 2 anos para produzir na situação habitual/rotineira. E por último, só para não me estender demais, no meu caso específico, os trabalhos são extremamente ligados ao contexto onde são produzidos. Eu jamais teria feito um pincel de cabelo no Brasil, provavelmente não teria se quer pensado nisso. Ou em trabalhar com raízes de cogumelos, por exemplo. É claro, portanto, que mudar de contexto impacta profundamente o que faço.

Eu desejaria passar a vida em residência. Gosto de pular de uma para outra. Às vezes que fiz isso, não tive necessidade alguma de voltar pra "casa". E quando voltei, tive de trabalhar muito para não me perder em depressões. A vida é mais intensa, em residência. Em uma delas escrevi: "gosto da intensidade do que é finito". Em francês ficava mais sonoro / mais bonito.

Vitor: obrigado pela referência ao meu livro. acho que é um belo final de entrevista. daqui pra frente é entropia desse instante.

Dri: J'aime l'intensité de ce qui est fini.


Presenza, 2016. Tecido, metal, vidro, pedras e outros objetos. Dimensão ambiente.


Pus (hairbrush), 2018. Video (1'12'') e objeto (cabelo e metal enferrujado. 100 x 30 x 8 cm)


Antes do pó, 2018. Escombros, tecidos, metais e outros objetos. Medidas variáveis.


Orquestra, 2016. Trapos e pregos enferrujados. Medidas Variáveis.


Notas, 2018. Papelão envelhecido e prego enferrujado. 12 x 7 x 8 cm


de Bois, 2017. Plástico e pó de madeira. 160x 80 x 40 cm


Coleção, 2016. ferramentas enferrujadas organizadas em casa abandonada. Medida Ambiente

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