filho de pai torturado pela ditadura militar, Paulo Villar é poeta que deixou seus poemas no passado, mas não perdeu a prática da beleza da linguagem ao falar sobre a vida.
(foto: Vitor Miranda)
Vitor: Villar, você é filho de uma pessoa que foi torturada pela ditadura. como você se sente quando escuta pessoas exaltando torturadores ou pedindo a volta do regime militar?
Villar: eu sinto, que geralmente, são conclusões equivocadas criada pela mídia supérflua sem aprofundamento na análise da história, dos conteúdos dos fatos que ocorreram. quem pensa assim está muito mal informado. eu, por exemplo, recebi uma mensagem no grupo da família de um primo mais velho que dizia: "pais, não deixem os filhos lerem os livros que os professores de história indicam na faculdade. são livros de esquerda que os levam ao socialismo e ao comunismo". aí falei pra ele: "olha, eu acho que você está equivocado. o que a gente tem que fazer pros nossos descendentes é justamente sugerir ao contrário. que eles leiam tudo que for possível e que eles tirem suas próprias conclusões". ler desde Adam Smith, Mao Tse-Tung, Chao Peng, leiam Charles de Gaulle, leiam como foi a França. que saibam porque os árabes são tão revoltados com a França, né? a legião francesa esteve no norte da África durante 120 anos. saíram de lá tem 50 anos. os franceses mataram 10 milhões de muçulmanos. não tô defendendo o terrorismo, mas você acha que eles pensam o que sobre os franceses? você acha que eles fazem isso por quê? e o meu pai quase morreu na tortura com a ditadura porque ele era candidato ao sindicato dos bancários. foi preso por causa disso, torturado e ficou sumido 45 dias. a grande coincidência é que na minha sala estudava o filho do Fleury. Paulo Sérgio Fleury, filho do Sérgio Fernando Paranhos Fleury que era o algoz da ditadura, da tortura, foi ele que matou o Herzog, entre vários. o filme "Pra frente Brasil" conta bem isso. eu revivi a prisão do meu pai naquele filme.
Vitor: seu pai, João Pessoa, dizia uma frase muito bonita: "se eu morrer será contra minha vontade". o que é a vida, Paulo Villar?
Villar: puxa vida, estou com 61 e já consigo ter uma visão mais ampla do que é o viver. ou seja, já tô mais pra lá do que pra cá. dificilmente vou viver mais do que já vivi. mas a vida é abraçar os amigos, é celebrar essa possibilidade de pensar sobre a própria vida. esse pensar, esse filosofar eu acho muito importante. acumular algum entendimento de ser mais humano e generoso com a vida. preservar a vida acima de tudo. no meu caso, muito particular, minha vida é fotografia, leitura, a família, são blocos, né? acho que a vida é isso: são blocos distintos que se interligam ao mesmo tempo. cada pessoa tem esses blocos, seja o bloco da sobrevivência que é trabalhar, levar comida pra casa, fazer as coisas profissionalmente que é preciso fazer se você vive numa civilização como a nossa. se você vive no meio do mato a vida já é bem diferente, né? mas nesse mundo moderno, na sua grande maioria, que a gente tem hoje nesse planetinha aqui somos conjuntos de engrenagens que se interligam. cada pessoa é um bloco e cada uma delas tem um conjunto de coisas que acabam fazendo essa simbiose do ambiente. nós fazemos parte de uma natureza por mais que o concreto queira dizer que não.
Vitor: nosso grande poeta engenheiro. a Fernanda Montenegro disse numa entrevista que vida é memória e se a memória acaba não faz sentido a vida. seu pai teve Alzheimer e uma das vezes que você foi visitá-lo na clínica você disse que havia outras pessoas no quarto, cada uma acreditando numa história que só existiam na cabeça delas. você saiu dali acreditando haver várias verdades. porque tudo ali era verdade. o que é a imaginação?
Villar: ao pé da letra é você criar uma imagem. imaginar é criar uma imagem. nós que trabalhamos com imagem fazemos isso o tempo todo. a frase que acabei desenvolvendo como pretensão de algum entendimento do que é isso, eu formulei que: tudo é verdadeiro e ilusório. a realidade não existe. ou a realidade é esse conjunto de todos os seres que faz alguma coisa até hoje incompreensível que é a humanidade, que é o sapiens. a humanidade agora é o sapiens, já que o sapiens destruiu todos os outros. sabia que nós temos 2% de genética neandertal? eles fornicavam entre si, sapiens e neandertais, ó! que nem a cachorrada, velho, cruza todo mundo. mas qual foi a pergunta mesmo?
Vitor: o que é a imaginação?
Villar: eu formulei essa frase "tudo é verdadeiro e ilusório" porque é o que você tem em você. se você expressa um entendimento da coisa, aquela é a sua verdade e ilusório, porque de repente é uma brisa do seu cérebro como acontece com as pessoas com alzheimer. meu pai, por exemplo, teve delírios em algumas crises, tão fortes que depois ele me perguntava "ô Paulo e aquilo lá de terem sequestrado sua mãe, torturado sua mãe". "não pai, não aconteceu isso" respondia e ele insistia na história e eu tinha que dizer pra ele que não era verdade. acho que foi algum medicamento errado que ele estava tomando e acho mesmo, porque meu pai cego e a minha mãe rudimentar em leitura administrando o medicamento dele, imagine, deve ter tomado um a mais, outro a menos. deu uma pirada, ficou ligado, plugadasso 42 horas a duzentos por hora. tive a oportunidade de acompanhá-lo numa internação e cara, eu não consegui dormir, ele estava totalmente acelerado. foi medicamento errado. não posso provar, é só uma intuição minha. mas as coisas que ele imaginou, durante quatro ou cinco dias, pra ele eram verdades. "não, mas e aquilo lá...". "não, pai, nada disso daí aconteceu. você teve uma crise no alzheimer" e ele falou "nossa! eu tinha isso claramente como verdade, que os torturadores estavam aqui". você vê como foi traumático a tortura que depois de 43 anos na crise de alzheimer essas coisas afloravam.
Vitor: falando em memórias, seus poemas foram escritos na década de 80, início dos 90, você quase não escreveu mais poemas depois disso. por que você parou de escrever?
Villar: aconteceu uma coisa engraçada que eu lamento um pouco. eu era um leitor voraz, que eu era professor de literatura, às vezes dava aula de gramática, língua inglesa, cursinho, coisa de quem estudou muito no vestibular pra engenharia. então eu me virava, como faz meu filho do meio, o Paulinho. ele faz estágio e tira uma graninha razoável dando aula particular. são as formas de sobreviver. você usa as ferramentas que Deus lhe dá, amém irmão. e aí comecei a pensar, que talvez, Banco do Brasil e cursinho objetivo, que é uma pedagogia massificante, preocupada em jogar as pessoas dentro da faculdade, que não é a melhor coisa pro Brasil. a melhor coisa pro Brasil é o curso técnico. então esse meu desacordo com a filosofia do Di Genio, que é o proprietário, não sei se ele é vivo ainda, do grupo Objetivo. não gostava do sistema, mas era bom pra mim porque no Objetivo eu não tinha que preparar aula, eram aquelas salas enormes, tinha apostila. quer dizer, claro que eu preparava aula, mas era uma aula meio show, uma aula muito agitada, muito de adrenalina pra manter a produtividade, manter os alunos atentos, então você tinha que ter muita energia. comecei a dar aula com 26 anos. e nessa época eu lia 4 livros por semana em média. só que quando entrei na fotografia, por algum motivo, eu praticamente parei de ler. eu lia lá 200 livros por ano, tem até um livro novo "qual é o segredo de ler 200 livros por ano". mas tinha passado pra dois, três livros por ano. hoje retomei, leio um livro a cada dois meses em média. mas eu tô bem impressionado com um livro chamado Sapiens.
Vitor: você citou Deus. quem é Deus?
Villar: sou eu mesmo.
Vitor: você acredita em Deus? qual sua relação com religiões?
Villar: não tenho religiões, mas eu acredito, como diz o texto do Stuart Angel, filho da Zuzu Angel, os dois falecidos. ele falecido na tortura. ela era do mundo fashion e casou com um americano, Norman Angel. então o filho dela morreu na tortura. ele era ligado à luta armada em 68 e ela escrevia sempre, escrevia pra todos os artistas, até que Chico Buarque escreveu aquela música: "Quem é essa mulher / Que canta sempre esse estribilho? / Só queria embalar meu filho / Que mora na escuridão do mar / Quem é essa mulher / Que canta sempre esse lamento? / Só queria lembrar o tormento / Que fez o meu filho suspirar / Quem é essa mulher / Que canta sempre o mesmo arranjo? / Só queria agasalhar meu anjo / E deixar seu corpo descansar / Quem é essa mulher / Que canta como dobra um sino? / Queria cantar por meu menino / Que ele já não pode mais cantar" e ela acabou morta também de tanto que ela sacudiu todo mundo. o que você perguntou mesmo?
Vitor: Deus. você ia citar o texto do Paul Angel.
Villar: ele discutia com a mãe dele a existência de Deus, porque ele socialista, a mãe católica. no final ele escreve uma carta pra mãe dizendo que ele realmente não entendia algumas crenças da igreja e o que se fazia com o povo dentro dessas doutrinas religiosas, mas que ele tinha aprendido um pouco com a vida e que as coisas não são simplesmente uma formulação de uma outra pessoa, então que ele se rendia ao Deus, ele escreve assim: "me rendo ao Deus que há em mim". eu penso mais ou menos por aí. tem alguma energia que nos move, que ainda é incompreensível e que tá nos organismos, que é essa grande simbiose que é o Planeta Terra, essa que é a grande vibe. Comunismo tem muitas verdades, muitas falhas também, claro, nunca chegamos a viver um socialismo, um comunismo na Terra pra valer, mas o comunismo simplesmente é internacional, internacionalista, que quer dizer: não existe fronteira. quem que criou a primeira fronteira? quem que botou o primeiro arame e disse essa terra agora é minha? ele tomou essa terra de quem? claro, existe uma história que conta isso, mas eu acho que um dia o homem vai entender que é por aí.
Vitor: já falamos aqui que você é filho de comunista, teve uma educação em casa nesse sentido, mas você virou um fotógrafo publicitário. como é lidar com esse paradoxo?
Villar: realmente é um paradoxo que já pensei muito a respeito, mas devido as circunstâncias de morar numa metrópole como São Paulo, eu simplesmente adoro fotografar, sei que as coisas que fotografo na publicidade eu curto pra caralho, em termos de imagem, em termos da produção fotográfica, pois tem a ver com a engenharia, tem a ver com a matemática, são coisas que me atraem, tem a ver com a poesia, com a literatura. tudo isso se mistura. fica essa parte, realmente, que eu considero a imagem na publicidade, e sendo a fotografia a base de toda formulação imagética que nós conhecemos, seja o teatro, o cinema, a fotografia está presente em tudo. ela é a base imagética.
Vitor: a fotografia hoje é muito instantânea. acabou aquele lance de esperar o momento pra fotografar. você acha isso? que a foto tinha esse lance de esperar e hoje as pessoas pegam o celular e clica. então o que é a espera?
Villar: a espera fotográfica é um negócio maravilhoso, principalmente pra quem se aventura à campo aberto, é uma coisa que eu gostaria de fazer, gostaria mesmo de pegar um veículo, dá um rolê, fotografar, tirar uma onda. mas a foto ela tá rápida e banal pras pessoas num modo geral que não vivem disso. acredito que o profissional, o cara que tá lá dedicado a criar uma boa imagem, uma boa fotografia, de produzir essa foto, ele tá no mesmo tempo. isso aí acho que não muda.
Vitor: agora pra finalizar, Paulo Villar, já que você nos falou que viveu mais da metade da vida. você está com medo da morte?
Villar: se sabe que é uma coisa que nunca pensei? nunca tive. nunca tive medo, eu até tentei me preocupar, pois vejo gente que se preocupa muito com a morte. chora de pensar que um dia vai morrer. vai tomar no cu, caralho. que falta de tempo do que fazer, cara. te juro, nunca tive isso aí. mesmo porque eu nunca vou morrer.
Vitor: então vou terminar com aquele poema que você fez pras fotos que te enviei de um cemitério onde havia ipês cor-de-rosa e o túmulo de uma pessoa que morreu aos três anos de idade.
Villar: triste Tatiana...
triste Tatiana
que sob essa laje fria
repousa descansa
sob folhas de ipê rosa
sob muros intransponíveis
nao imaginas como teu povo
hoje se volta e se perde
aos urubus que sobre eles
circundam e espreitam a morte
antecipada de tantos nós
pobre Tatiana perdida
sob folhas de ipês
como manto cor-de-rosa
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