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prosa com poeta: Thiago Henrique, o Kbça

roqueiro, filósofo, professor, funcionário público e motociclista, Thiago Henrique, o Kbça da banda Guerrilha é amigo de boas conversas nas madrugadas paulistanas. amizade feita por intermédio do teatro e fortalecida em meio às bombas de gás lacrimogênio atiradas pela polícia no dia 13 de Junho de 2013.


Vitor: o que é a filosofia?

Thiago: Cara, eu poderia dar a definição manjada da etimologia da palavra (filos / sophia), aquele papo professoral de ensino médio que todo mundo já sabe e tal. Mas quando você me pergunta isso, me parece que vc quer saber o que é filosofia pra mim. Então, pessoalmente, filosofia é o modo de estar e perceber o mundo. É o que me traz a angústia necessária pra querer e não querer a morte, pra me salvar do tédio de saber que o nosso modo de vida e as amarras dessa estrutura não são necessárias nem absolutas pra nos dobrarmos e aceitá-las as venerando e, ao mesmo tempo, colher o fracasso de estar vivendo dobrado sobre essas amarras mesmo sabendo que tudo poderia ser mudado. Filosofia é um exercício de imaginação necessário para vencermos a vida administrada e implodirmos essas amarras que podem estar sobre nossos corpos, mas não sobre nossas mentes. Só que é um exercício de imaginação que obedece um rigor racional e lógico profundo e isso pode parecer contraditório, mas não é. Porque a submissão acrítica é que é morte da imaginação. Mas ao mesmo tempo esse exercício nos revela a angústia de nossas impotências, então ao mesmo tempo é uma maldição e salvação.


Vitor: já que estamos aqui fazendo essa entrevista por causa do tédio em nossas noites. o que é o tédio?

Thiago: o tédio é a falta de inventividade pra fazermos do nosso momento livre algo significativo, que sirva a nós mesmos como justificativa aceitável diante do incrível absurdo de existirmos. Para que isso não seja um desperdício de oportunidade gasto com qualquer banalização e despertencimento que não nos seja suficientemente agradável.


Vitor: as letras da Guerrilha são políticas. numa aula que fiz sobre política o professor só falava de amor. o que é o amor?

Thiago: As letras da Guerrilha não são exclusivamente sobre política. Mas sinto que no contexto em que vivemos é importante abordar esta questão. O amor é uma forma de se fazer política também, assim como o ódio e a indiferença também é. Qualquer que seja nossa postura diante do outro sempre implica num ato político. O amor no sentido amplo não enquanto 'Eros', mas enquanto 'Ágape' é um exercício de empatia e de convergência dos nossos afetos. Esse é um grande desafio que exige de nós algo que nos tira completamente da 'zona de conforto' com que acostumamos a reger nossas vidas dentro lógica vigente do individualismo e hedonismo, porque, muitas vezes, estar com o outro e pelo outro significa dor e sofrimento, do que naturalmente queremos fugir sempre, mesmo tendo consciência de que isto é inevitável.

O amor não é um ato passivo, ao contrário, o amor é algo combativo tanto interna como externamente. Acredito que quando praticamos o amor temos um ato muito corajoso neste sentido. Não se trata da compaixão piegas cristã, mas de encontrarmos em nós a responsabilidade diante da condição humana que reproduzimos e sentir a dor que também temos guardada em nós por conta disso e, a partir daí, dividir isto com o outro que também é humano como você, por isso dá pra se ver no outro e praticar essa transcendência simbólica, que tem o seu valor ontológico real e não meramente abstrato por conta de ser simbólico. Da mesma forma isso pode ocorrer com as nossas alegrias compartilhadas. Quando se fala 'se colocar no lugar do outro' é em si algo impossível, mas encontrar em si aquilo que também se passa e afeta o outro é possível porque nossa condição humana é comum.

Pra mim a grande questão não é definir o que é o amor, mas tentar entender o por que de sermos inclinados a buscar ele, mesmo sabendo que sua prática seja tão simples e tão difícil ao mesmo tempo.


Vitor: já que falei em aula. você é professor. como é ser professor em São Paulo - SP - Brasil ?

Thiago: Sim, eu sou professor de filosofia. Dei aulas no ensino médio em uma escola pública estadual na ZN de SP por 7 anos. Mas, no momento, não estou em sala de aula. Resolvi voltar a estudar e estou cursando história no período noturno, isso me impossibilitou de dar aulas pela falta de tempo pra conciliar minhas atividades e compromissos com o horário de dar aula, já que tenho outro emprego no estado como executivo público durante o dia no horário comercial. Para poder voltar a estudar tive que optar entre a satisfação em dar aulas ou trabalhar para a burocracia do estado. Fiquei com a segunda opção por necessidade financeira. Isto explica um pouco da situação da educação pública de São Paulo. Além do grande desafio atual pelo qual passa a escola como instituição que deve re-significar a educação nesta nova sociedade da informação, o que passa por construir um novo paradigma para as relações de ensino-aprendizagem que supere a organização fordista e jesuíta que regem a escola desde a sua formação, em especial a escola pública sofre uma precarização sistemática há décadas sob o mesmo viés governamental neoliberal. Como Darcy Ribeiro dizia, esta falência da escola pública não é um mero acaso ou desajuste de ingerência, mas ela decorre de um projeto que é parte da política neoliberal de transformar direitos em mercadoria, assim não só as famílias buscam migrar sempre que possível para a escola privada, da mesma forma os professores em busca de melhores condições financeiras e para exercerem sua atividade seguem este destino, ou os que ainda se sentem capacitados pra exercerem outras funções no mercado de trabalho acabam abandonando a educação. Os demais professores que permanecem na carreira tendem a se entupirem de aulas acumulando 2 cargos ou até mesmo dividindo aulas também no ensino privado e dificilmente conseguem tempo para atualizarem seus conhecimentos e raramente as experiências educacionais são inovadoras. A defasagem está tanto na infra-estrutura quanto na superestrutura. Eu raramente tive problemas com alunos em minhas aulas, mas era muito difícil lidar com o pensamento retrógrado da direção do colégio. A escola não está inserida nas novas tecnologias que são comuns e fazem parte o tempo todo de nossa realidade, nem sequer a academia tem condições de fornecer uma formação para os professores que seja capaz de lidar com essa nova forma interativa e tecnológica, então os professores continuam munidos de giz e lousa e os alunos entretidos com seus celulares com incríveis distrações. E a incapacidade da escola em lidar com isso usa o autoritarismo como recurso e busca proibir o uso das tecnologias, ficando ainda mais distante do interesse e da realidade do aluno. Esses são alguns aspectos gerais do desafio que é ser professor atualmente, mas eu quero dizer que mesmo diante destas dificuldades eu pude ter experiencias incríveis que foram enriquecedoras para os alunos e para mim. E nada disso poderia ocorrer fora do ambiente escolar, portanto, vejo com muito receio e revolta o discurso deste novo governo que é pautado em um medievalismo medonho e busca atacar os professores e implementar uma agenda moralista religiosa, sexista e mercadológica que, ao invés de emancipar o cidadão em formação, o transforma em um sujeito acrítico e mais suscetível as amarras dessas estruturas carcomidas que historicamente nunca produziram resultados positivos para a sociedade. Mais uma vez, o Brasil está na contramão do processo civilizatório. É uma afronta e uma vergonha sem tamanho o que está se desenhando neste novo governo. Vitor: fora o funcionarismo público, a filosofia e a educação, você também é o vocalista da Guerrilha. o rock já teve uma relevância cultural política como outros estilos, a própria MPB, o RAP. hoje em dia um trabalho artístico que contesta não chega a uma massa considerável como Pink Floyd, John Lennon, Bob Marley, ou o próprio Chico, Caetano, Gil chegaram. talvez, tirando a Anitta, no Brasil não temos nenhum artista dessa geração de tamanho reconhecimento que faça o trabalho atingir grandes proporções. como você descreveria a cena rock hoje em dia?

Thiago: Cara, legal você ter me perguntado isso. Por conta da minha atuação na música eu tenho pensado e conversado muito sobre isso com pessoas também envolvidas no mercado musical em diversos graus de profissionalismo. O que me parece bem claro nesta questão da pouca relevância no alcance do grande público no rock e também em alguns outros estilos é que toda a estrutura de mercado da música mudou consideravelmente, em especial nessa última década. A internet e os demais avanços tecnológicos na parte da gravação alteraram muito a facilidade tanto de produção como de acesso à música, e isso fez com que toda estrutura tradicional da indústria da música ruísse. As grandes gravadoras praticamente acabaram, as poucas que se fundiram e ainda existem funcionam de outro jeito. Não se vende mais CDs, portanto, elas não investem mais na produção de um artista. Tudo agora ficou na mão do artista, seu gerenciamento de carreira, relações públicas, produção artística, financeiro, imagem, etc. Só que os artistas não tem estes conhecimentos específicos pra isso, nem conseguem montar e bancar uma equipe a ponto que seus dividendos com produtos e shows cubram estes custos. Tudo isso ficava a cargo das gravadoras.

Por um lado a produção e a distribuição musical ficou mais democrática e garantiu o retorno direto ao artista, praticamente sem intermediários. Por outro lado, tudo ficou planificado e mais nivelado. Não tem mais MTV e outros canais em que se concentravam e canalizavam as atenções do público. Hoje se produz bem mais, os recursos permitem fazer algo bom sem custos elevados. Isso é legal porque você encontra uma diversidade enorme de propostas musicais, estilos, etc. em seus diversos graus de criatividade. Você vê coisas feitas de forma mais séria e coisas ridículas sem nenhuma preocupação com a qualidade.

Só que na internet essa imensidão de produção acaba sendo como uma imensa floresta vista de de um voo panorâmico. O público quando olha num primeiro momento não tem direcionamento imediato sobre o que vai ouvir. É como se cada árvore na floresta fosse a página de um artista ou sua música, portanto, fica muito difícil pro artista direcionar as atenções de uma massa ao seu trabalho de forma sistemática. Acaba sendo tudo muito aleatório e pulverizado. As redes sociais acabam ajudando os artistas a direcionar as pessoas mais próximas com que tem contato e isso tem um certo limite e não um alcance massivo. Você pode 'viralizar' por algum trabalho que tenha feito e de uma hora pra outra atingir muitas pessoas, mas isso não te garante um público fiel, pois da mesma forma diversas bizarrices 'viralizam', porque não existe mais nenhum centro que canalize as atenções e seja capaz de lidar com algum critério que sirva de peneira pra filtrar ou segmentar o que é produzido de acordo com a qualidade ou nicho de consumo. Tá tudo meio que perdido por aí. Com exceção dos grandes artistas que já tem apelo no imaginário popular e consolidaram seu público ainda sob o antigo sistema da indústria musical e os que conseguem investir bem pesado na compra de espaços nas redes sociais monetizando suas páginas e vídeos e a partir daí geram um público novo, esses já mostraram um maior domínio dos paradigmas dessas novas ferramentas de mídia.

Isso tudo que eu disse tá relacionado a questão da música em geral, agora, especificamente, em relação ao rock eu vejo um desafio ainda maior. O rock sempre foi muito comercializável - não digo 'comercial' porque esse termo nos induz a pensar que a finalidade seja exclusivamente vender - mesmo chocando as pessoas por seus ideais críticos e atitudes de inconformidade com a ordem e a tradição, ainda sim, em termos financeiros o rock sempre agradou a indústria cultural. Acontece que hoje em dia não é assim. Boa parte do público de rock e também das bandas tem uma postura conservadora e moralista. Ao invés de criticar as estruturas sociais - que, visivelmente, geram diversos males pra sociedade, ainda mais em um país tão desigual quanto o nosso - eles se demonstram completamente domesticados pelo mercado e pelo estado, por isso defendem, muitas vezes cultuam o autoritarismo e o liberalismo econômico. É de uma ignorância se sentirem indignados com as coisas serem péssimas como são e, ao mesmo tempo, achar que a solução é potencializar, ainda mais, as forças de poder que, justamente, promovem todo esse desequilíbrio e mal-estar. Mais ainda, isso demonstra uma pobreza de imaginação absurda achar que não existe possibilidade de se transformar as coisas, fazer tudo de outro jeito, e que o único caminho é resgatar um passado na grande ilusão de que antigamente era melhor. Porra nenhuma! É isso que o rock virou em grande parte, um bando de moralista babaca que acha que ouvir rock faz deles pessoas culturalmente mais sofisticadas do que o povão que curte funk e sertanejo. É muito o pensamento de classe-média que se acha mais intelectualizada só porque tem um diploma universitário e uma renda que permite viajar pra lugares legais parcelando em dez vezes.

É por isso que, ao meu ver, o cenário hoje só gera retorno financeiro pra bandas covers. Hoje em dia o rock não figura mais no mainstream e praticamente está confinado em pubs e MCs e, boa parte desse público não está interessado em novas propostas de mundo nem em se engajar por questões que nos afeta, apenas querem distração pra dor, então pra esse mero entretenimento a banda cover é perfeita e, ainda por cima, ela instiga a memória afetiva e ajuda a fomentar aquele saudosismo e a ilusão de que aquele passado era melhor. Isso ajuda a entender um público que vai ao show do Roger Waters ouvir composições feitas há mais de trinta anos e que vaia quando ele usa essas músicas pra tomar posicionamentos políticos sobre questões atuais. Ele não mudou as músicas, nem o posicionamento que tinha, são as pessoas que só ouviam aquilo de forma alienada, sem qualquer preocupação além do entretenimento. Na essência do rock está a transgressão, sem isso ele morre, ele fica meramente comercial e deixa de se diferenciar dos demais estilos de música que são meramente comerciais. E já que é pra se divertir apenas, outros ritmos fazem isso muito melhor, ritmos que são mais empolgantes para dançar e sensualizar do que esse rock quadradão de mentalidade moralista e machista. Já que você falou em Anitta, Anitta é muito mais representativo e subversivo que 90% das bandas de rock que existem por aí.

O rock só é capaz de tocar as massas através da poética de revolta e da transformação, sem isso o rock está morto, é um corpo sem alma. É isso que eu tento manter em mim e na Guerrilha, pra que esse sentido não morra em mim e pra que eu não morra também. Tem muita banda boa e interessante por aí que ninguém conhece. Eu tenho a sorte de muitas vezes tocar com algumas delas. A crítica que eu faço as bandas covers não diz respeito a qualidade delas, pois boa parte delas são formadas por músicos excepcionais, mas que estão usando seu talento pra repetir o que já existe. É mais uma camada de tinta sobre o mesmo quadro. Muitos mantém suas atividades nos dois eixos (cover e autoral) porque sabem o talento que tem pra criar. Eu tenho certeza que se o público se prestasse mais a sair de casa se permitindo ir em busca do novo iria se surpreender com muita coisa legal e isso proporcionaria uma maior e melhor produção original.


Vitor: parece que nossos sonhos foram pulverizados. como será sonhar no futuro?

Thiago: Desde o fim da contracultura nossos sonhos foram transformados em mercadoria. No futuro você poderá comprar seu pacote de imersão virtual de hiper-realidade e realizar todos os seus sonhos, pelo menos durante o período de tempo que seus créditos permitirem.


Vitor: encerro com o videoclipe da Guerrilha que tive o prazer de dirigir e que mostra nossos sonhos realizados no passado e que hoje virou pesadelo.


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