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prosa com poeta: Clara Baccarin

a poeta urbana do mato. a poeta caipira da cidade. Clara Baccarin é uma estrada de versos que reside num sítio localizado numa estrada chamada Livros.

Vitor: qual o papel da poesia nos tempos de ódio?

Clara: Pra mim poesia é lugar de respiro. Não um respiro alienado, mas é onde a gente consegue deixar de ouvir as vozes de fora e expressar uma verdade mais íntima. Nudez, sabe. no poema eu posso ser nua e mergulhar num mar salgado. O que realmente pulsa em mim? Aquilo que pulsa numa camada mais abaixo dessa vida adulta de mulher em meio ao caos. Não é sempre daí que vêm meus poemas, mas nesses tempos e muitas vezes é daí que acesso. Poesia é respiro. Respiro profundo e de olhos fechados. Tocar no humano que existe em todos nós independente do time de futebol.


Vitor: os antigos povos judeus acreditavam que o coração era o órgão responsável por sentir os sentimentos por causa da dor sentida no peito nos momentos de angústia ou euforia. pelo mesmo motivo os indianos atribuíam essa responsabilidade aos pulmões. já os yanomamis da amazônia acreditam que os sentimentos são coisa da alma. de onde vêm os sentimentos?

Clara: Da pele, da derme, da membrana que cobre todos os órgãos. Mas com certeza há muitos sentimentos sendo criados e processados por tantos órgãos. Já sabemos que no intestino existem muitos neurotransmissores, e que tristeza pode vir de uma colônia de bactérias mal habitada no intestino. Também sabemos que cérebro é ultravalorizado, e o coração, coitado, paga todos os patos. Acho engraçado todo mundo falar do coração quando sofre ou ama, e ir lá tomar um porre e nem lembrar do incansável fígado. Mas enfim, tá tudo na pele, de dentro e de fora.


Vitor: como é ser mulher?

Clara: É mais ou menos como ser poeta: é bonito e difícil. Pra mim é uma constante desconstrução. E um constante questionamento. Questionamento dos papéis sociais, questionamento do que eu fui educada para ser. E eu já entrei nisso há um bom tempo, talvez desde a primeira menstruação, quando eu me dei conta, com lágrimas nos olhos, que a partir de então eu tinha perdido uma liberdade espontânea de ser e estar. Meu corpo tomou outra conotação e virou algo que tive que tomar cuidado. Minhas falas também tiveram que ser repensadas. Eu nunca soube lidar muito bem com isso, talvez por isso eu seja desastrada, talvez por isso eu escreva, também como forma de grito ou como forma de voltar a ser livre como na infância. Também acho que não me desconstruo totalmente, senão eu nem saberia ser no mundo. Eu ainda uso sutiã. Mas sigo vivendo nessa busca de ser um pouco mais livre, de encontrar esse espaço ou/e forja-lo. Me conhecendo melhor, me absolvendo de culpas e esteriótipos. Rindo de tudo isso na medida do possível. Ser mulher é também estar consciente sempre. Porque muitas vezes a gente sofre abusos até sem perceber. Muitas coisas foram normalizadas e banalizadas, só que no fundo nos ferem. Eu não quero ser bonitinha e agradável. Quero ser fogo e doçura. Me chamam de louca, quantas vezes, de bruxa também, acho bonito. Devo estar no caminho certo.


Vitor: sua vida é repleta de regressos. o que você sente nesses momentos de regresso?

Clara: Minha vida é repleta de regressos e fugas, de encontros e desencontros, de mortes e renascimentos (que vida não é né?), de histórias inacabadas que deixam no ar um singelo convite e de livros que nunca deveriam ter sido abertos. Então eu acho que minha vida é tão repleta de regressos como de fugas. Eu tenho mania de sair correndo quando não caibo inteira num ambiente, numa história. Mas eu também me permito regressar quando os abraços se abrem, e acho que o regresso acontece para lugares e pessoas que ainda há identificação, que ainda há possibilidades de trocas, que ainda há brincadeiras que cativam. A morte pra mim, o fim, não tem a ver com tempo e espaço, com presença ou distância. Porque a morte, quando se dá, é dentro. Simplesmente acaba a energia vital, acaba o interesse, a vontade, os pensamentos já não querem tocar aquele lugar, naturalmente. Mas se ainda vive, se não se tornou árido, muitas vezes eu ainda quero regressar. E de toda forma, o regressar é sempre para o novo, porque todas as ondas já mudaram de lugar. Então, regressar é sim, muitas vezes, seguir em frente, aberta para as novas possibilidades. E eu acho que às vezes eu gosto de tocar o novo, de chegar com a minha bagagem cheia de novidades em terrenos familiares, em olhares que já me habituei e me conhecem bem. Regressar é como voltar pra casa. Quando é assim, eu retorno e respiro.


Vitor: hoje você mora no interior, num sítio, em monteiro lobato. já morou em são paulo, vinda do interior do estado. qual a distância entre a metrópole e o sítio?

Clara: Alguns universos paralelos. Eu gosto muito de mato, desde criança, poderia escrever várias linhas aqui só sobre o mato, sobre o pé no chão, sobre o corpo solto, tem tanta coisa nisso, mas acho que vir morar numa cidadezinha bem pequenininha bem no alto de uma montanha, teve a ver com uma busca de me desmatrixar um pouco, sair da matrix. Mas aí surge a pergunta: sair da matrix é ilusão? Ou, será que tem como sair da matrix? Ou, será que é bom mesmo sair da matrix? Será que eu to aqui perambulando nessa encarnação para sair da matrix? Ou ainda, será que sair da matrix é uma viagem que se faz em quilometro e paisagens de fora? Aí que eu gosto e valorizo essa vida mais natureza, são muitos aprendizados em cada olhar, mas eu também gosto muito de pegar duas horas de estrada e tomar um banho babilônico paulistano, tem muitas colheitas aí também para a poesia, para a vida. Parece uma viagem curta, fácil, mas é transcendental. Aqui no mato meu olhar tem horizontes, há menos informações, o ritmo do corpo muda. Na capital eu chego e às vezes esqueço que tenho que acelerar, eu fico com sono às 9 da noite e esqueço que deveria ir pra um bar, mas muitas vezes eu vou sim, e aí como qualquer boa caipira, eu caio de cara também. Já não sei medir as doses, ou me embebedo de verde ou eu encho a cara de cinza. Já me disseram que minha poesia tem muita coisa de natureza, eu acho que quem falou isso não me leu bem, ou me leu de menos, minha poesia tem muito de cidade também. No meu livro novo que lanço no ano que vem, Vísceras, a mulher urbana aparece muito, acho que mais do que tudo. A mulher acidificada pelos sabores ocres dos smartphones e dos olhares que não se cruzam nas esquinas. Mas pra mim, que moro numa cidade de 4.000 habitantes, e as pessoas já me conhecem pelo nome, é tão bom não ser ninguém de novo. Uma vez escrevi um micro poema assim:


são paulo

sou palha

no palheiro


Vitor: vísceras e entranhas são palavras muito usadas por nós poetas. pelo menos eu penso que sim. o poema é uma fratura exposta das nossas vísceras. como manter nossa intimidade preservada?

Clara: Acho que podemos manter a nossa biografia preservada, mas a nossa intimidade não. A poesia não é artigo de preservação. A poesia é espaço para coragens, de sentir, de dizer, de desconstruir, de desajustar, de desnudar e essa ‘intimidade exposta’ tem muito mais a ver com o olhar do que com quem eu vou pra cama. O olhar do poeta pode ver um mendigo na calçada, um cachorro que fugiu e virou uma lebre, uma flor selvagem numa noite deserta. Pode ver uma caverna desconhecida e manchar versos com sombras de dentro. A poesia olha por mim, e ao deixa-la ser, eu escolho ser fratura exposta das vísceras e aí, sabe, é um sentimento de mundo escrever poemas, é fotografar emoções, instantes, palavras, flashes, paixões, dores, mistérios, em todos os cantos e é ficcional porque cria, porque é um universo em si. Mas apesar disso, apesar que escrever poemas está conectado com o universo criativo e não com o diaresco, meus versos (expressos em livros e páginas online) têm sim alterado, influenciado, desanuviado, escurecido, repaginado, dificultado e alargado a minha biografia.


Vitor: falando em biografias, pra encerrar essa entrevista, sempre digo que no futuro não seremos reconhecidos nem depois de mortos. você pretende morrer?

Clara: Ultimamente eu to pretendendo viver. Eu já morri demais. Eu já sei não existir, eu já sei deixar de existir. Já matei algumas versões dentro de mim, já tirei brasas de tantas fogueiras e morri. Fiquei sem lar, deixei as malas numa estação de trem em alguma lua nova do pacífico, desapeguei de tudo. Agora eu quero me apegar, senão faço como? Ainda tenho pele, osso, sangue, talvez uns anos pela frente. Não sei se é bem sonhos que eu cultivo dentro ainda, também já matei tantos sonhos, pelo menos esses que pensam que podem ser do jeito egocêntrico de ser. Sonho também tem que ter humildade pra sacar que às vezes os caminhos são outros. Mas algo eu ainda cultivo, a poesia talvez tenha segurado meu corpo aqui neste mundo. Porque permite que minha amalucada alma crie espaços e invente roupagem mais confortável. Depois de morta, algumas vezes eu fui reconhecida, e isso me ajudou a viver mais um pouco, ou a reviver. Mas agora eu quero ser reconhecida viva, e não é pelos poemas, é porque é bom quando a gente encontra alguém que se anima com a nossa existência e compartilhamos isso. Quer coisa melhor? celebrar um encontro de felicidade de existências vivas. Agora, quando eu for enterrada (espero que não seja num cemitério, prefiro no quintal), se nenhum poema meu sobreviver tá ótimo. Eles nunca foram meus mesmo, e eu não tenho nada a ver com isso. Mas agora eu espero que a poesia continue amparando a minha vida humana.

a minha selvageria fica

avistando vales e morros

entrando por frestas de cercas

intencionalmente interrompidas

dando-me liberdades

e depois saindo com o rabinho

entre as pernas

pelas mesmas frestas reconstituídas

de medos


a minha selvageria fica

comendo cactos e plânctons

encantoando-se nas adaptações

escarafunchando becos e vãos

correndo solta nas vísceras

procurando matilhas de loucos

onde possa enfim

uivar


a minha solitária selvageria

quase extinta

esgarçada

de muitas graças

escorridas

da própria saliva

nos olhares

arredios e

insistentes

em domesticar

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